quinta-feira, 29 de março de 2012
JAMES JOYCE, ESSE DESCONHECIDO
Este texto pretende assinalar a publicação de uma tradução que considero notabilíssima de uma obra de James Joyce, ”Chamber Music” (“Música de Câmara”, em português).
A obra de Joyce só é parcialmente conhecida entre nós. Se exceptuarmos “Gente de Dublin”, “Retrato do Artista Quando Jovem” e “Ulisses”, pouco ou nada mais é conhecido pelo grande público que se limita a ler obras em língua nacional. De “Ulisses” circulam mesmo duas traduções: a do brasileiro António Houais (Difel) e a do português João Palma Ferreira (Livros do Brasil). A estas duas traduções já me referi em texto anterior publicado neste blogue. A tradução a que hoje me reporto é da autoria de João Flor, anglicista de renome e professor da Faculdade de Letras de Lisboa, e acaba de ser publicada pela Relógio d’ Água. Como não posso, nem devo fazer uma análise da poesia de Joyce, limitar-me-ei a uma chamada de atenção para esta tradução.
“Música de Câmara” é uma obra poética da juventude de Joyce (foi publicada quando tinha 25 anos), premonitória de escritos posteriores. Tradução digna de menção, esta, de João Flor, da qual salientarei apenas dois aspectos: o conhecimento profundo do texto e das suas filiações na cultura inglesa; recriação extremamente conseguida a que o tradutor procede em ordem a encontrar ressonâncias equivalentes em língua portuguesa. Assim, encontramos, ao longo poema, ressonâncias das Cantigas de Amigo, da sonoridade lírica camoneana ou, até, de modernistas portugueses. Digo sonoridades, pois, como acentua João Flor, a “Música de Câmara” é uma obra eminentemente musical, em busca de uma expressão escrita que tenha a música como suporte. Ou, dito de uma maneira mais simples, de um texto escrito que seja uma partitura musical. O que equivale a dizer que estamos perante um grande poema lírico dos tempos modernos que, na sua versão portuguesa, vem enriquecer o nosso património poético.
“Para entender melhor - escreve João Flor, no Prefácio da obra - o lugar cimeiro ocupado na hierarquia das artes, convirá recordar como Joyce detectou e procurou superar as limitações da linguagem articulada, enquanto veículo de representação e expressão dos mais profundos conteúdos da corrente de consciência. Na sua funcionalidade referencial, demasiado concreta e denotativa, a palavra revelava-se-lhe a cada passo insuficiente para transmitir as relações harmónicas dimanadas de uma unidade recôndita, subjacente à diversidade multiforme e quase caótica das coisas. Sobretudo ao assumir a inadequação da linguagem verbal para comunicar o paroxismo das emoções exacerbadas, Joyce situa-se no limiar da inefabilidade e chega a valorizar, por exemplo, a expressividade elíptica de certas formas interjectivas que, na sua espontaneidade instintiva e natural, já se aproximam tendencialmente do silêncio”
A título ilustrativo de diferentes ressonâncias análogas às que poderemos encontrar em autores portugueses, vejam-se alguns dos poemas traduzidos por João Flor:
Poema XX:
Estrofe inicial
“À sombra do verde pinho
Quem nos dera reclinados
Em fresca sombra e profunda
À hora do meio dia”
Estrofe final
“Oh! Ao pinhal sombrio,
Pela hora do meio dia,
Vamos agora nós dois,
Vem daí, amor meu, vem.
Poema XXI
“Quem a glória perdeu sem descobrir
Nem uma alma sequer afim da sua,
Em cólera e desdém, entre inimigos,
Cativo por vetusta fidalguia,
E quem sempre se esquiva, em altivez,
Só tem seu próprio amor por companhia”
Poema XXX
“Aconteceu-nos o amor outrora,
Era ao pôr do sol e um de nós tocava
O outro, ali por perto receoso –
Que principia amor sempre em temor.
Era solene nosso amor. Findou –
Em delícias passámos tantas horas;
Que propício nos seja no final,
O caminho que falta percorrer”
A tradução portuguesa de “Música de Câmara” constitui um contributo importante para o conhecimento, em língua portuguesa, da obra de James Joyce. Esperemos que outras se lhe sigam. Falta-nos, inclusivamente, uma tradução da sua grande obra da maturidade,” Finnegans Wake,” o que talvez seja difícil de se concretizar, tais as dificuldades que o texto original apresenta. Mas se puderam ser ultrapassadas na tradução francesa de Lavergne (Gallimard), tenhamos a esperança que um tradutor português se apaixone suficientemente pelo texto para lhe consagrar uma parte do seu labor.
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