sábado, 29 de novembro de 2008

UMA MORTE ANUNCIADA


Isaack Babel, judeu russo de Odessa, nasceu em 1894 e foi fuzilado pela polícia política da União Soviética em 1940. Muito cedo, aderiu ao partido bolchevique e exerceu uma série de acções e de funções no âmbito da revolução soviética, inclusivamente a de combatente da Cavalaria Vermelha. Mas os ventos políticos mudaram e Babel é acusado de espionagem e traição e executado no quartel da polícia secreta, a NKVD. É preciso que Staline morra para que a justiça soviética o declare inocente.
Até aí, tudo “normal” para um cidadão da URSS, apanhado nas engrenagens da História desse país, como centenas de milhar ou de milhões de outros concidadãos. Tudo “normal” se não fossem duas coisas a distinguir Babel do comum dos mortais: é dos grandes escritores russos do século XX; é um homem de morte anunciada, que nada faz para fugir ao seu “destino”.
Tudo isto vem a propósito da publicação do seu primeiro livro em Portugal, “Contos de Odessa e Outros”, das Edições Dinossauro. O autor, no entanto, não era totalmente desconhecido entre nós, pois o primeiro conto desta colectânea, “História do Meu Pombal” (dedicado a Máximo Gorki) já havia sido publicado, creio que na revista “Ficções”. Isaack Babel, que tem Tchekov como antepassado legítimo, cultiva uma linguagem precisa e despida de ornatos, que o coloca na primeira linha dos escritores realistas do século XX, que fazem da emoção a razão de ser das suas histórias. A emoção que confere profundidade ao sentir (e ao agir) das personagens.
Outra virtude têm também estes “Contos”: são um fresco impressionante dos judeus russos a viverem na Ucrânia, nas primeiras décadas do século XX. Enfim, um exemplo da pujança da moderna literatura russa.
Mas o que eu pretendo com este meu texto é algo de muito específico: uma reflexão sobre a morte anunciada de Isaack Babel. Enquanto vive Máximo Gorki, a sua escrita e a sua vida não correm perigo. Gorki, o intocável, reconhece os seus grandes méritos literários, e, sempre que necessário, intervém a seu favor. Mas Gorki morre em 1936 e os problemas de Babel começam a agravar-se. É um momento de grande tensão política na URSS, em que os intelectuais, os artistas, os escritores são compelidos a cerrarem fileiras à volta de Staline e dos bonzos do regime que ditam os princípios a que a cultura deve obedecer. A cultura oficial, de encomenda, em que se incensa o chefe supremo. O que, obviamente, não corresponde minimamente ao conceito de literatura de Babel. No entanto, o regime político não parece muito interessado em eliminar fisicamente Babel (um dos escritores mais populares da sua época) e, assim, são-lhe facultadas várias oportunidades para sair do país e juntar-se à sua família refugiada na Bélgica. Ele sai, mas não fica... volta! O seu lugar é a URSS.
Ora, é este o grande enigma que não consigo explicar: o que leva um homem (inteligente, culto, lúcido) a arrostar com um destino que ele sabe adverso? Um homem que não se submete, não recua, um homem que se mantém íntegro, sereno e isento até ao fim. De onde lhe vem esta determinação, esta força? Da consciência histórica do povo judeu a que pertence? Da consciência de que a recusa em pactuar é a mais poderosa das armas de que dispõe? Seja como for, a sua vida e a sua morte constituem a mais exemplar das denúncias da política cultural do regime soviético. Um exemplo que não se apagará da memória dos homens.

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