quarta-feira, 8 de abril de 2009

CRÓNICA DA VIAGEM D'EL-REI SALOMÃO




É sempre com alguma dificuldade que inicio a leitura de um novo livro de um dos nossos monstros sagrados, seja ele o José Saramago, seja o António Lobo Antunes. Dificuldade decorrente do medo de sofrer uma desilusão. Ou porque a obra não esteja ao nível das anteriores ou porque não acrescente nada ao que escrito já foi – em suma, que seja mais do mesmo. E foi o que me aconteceu com “A Viagem do Elefante” de José Saramago (edição da Caminho). Mas nenhum destes receios se confirmou. A última obra de Saramago é um pastiche delicioso das crónicas tradicionais portuguesas. Uma obra plena de ironia, por vezes sarcástica, em parte resultante da utilização contrastada de linguagem de hoje com uma linguagem (e uma narrativa) tradicional. Obra que também se poderia intitular “Crónica da Viagem d’El-Rei Salomão” ou, talvez, “Crónica da Viagem do Elefante Salomão e do seu Cornaca Subhro”, pois, na verdade, não estamos perante um romance, uma novela ou um conto, mas de uma crónica de viagem (por vezes, quase de uma anti-viagem), com um toque cervantino, em que as figuras do Sancho e do Quixote tanto se aproximam dos fazeres e dos sentires do cornaca Subhro, como se expressam nos comentários do autor. E é neste entrelaçamento de figuras e papéis que reside um dos seus encantos maiores.
De salientar, ainda, a linguagem, plena de subtilidades, servida por um conjunto de artifícios (utilização do lugar comum, obsessão pela precisão, pelo pormenor), o que confere ao texto uma parente banalidade do discurso, suporte da finíssima ironia (a roçar o sarcasmo) que atravessa a obra e lhe confere um carácter de crítica social e humana. Mas que também abre a porta a uma perspectiva de desconstrução da linguagem, como o autor nos chama a atenção nas páginas 175/6:

“Reconheça-se, já agora, que um certo tom irónico e displicente introduzido nestas páginas de cada vez que da áustria e seus naturais tivemos de falar, não só foi agressivo, como claramente injusto. Não que fosse essa a intenção nossa, mas, já sabemos que, nestas coisas da escrita, não é raro que uma palavra puxe por outra só pelo bem que soam juntas, assim muitas vezes se sacrificando o respeito à leviandade, à ética à estética, se cabem num discurso como este tão solenes conceitos, e ainda por cima sem proveito para ninguém. Por essas e por outras é que, quase sem darmos por isso, vamos arranjando tantos inimigos na vida.”

Esta desmontagem da linguagem, que também é uma tentativa de desconstrução da escrita, evidente no texto que se transcreve, está implícita em muitas outras passagens e constitui um repto à inteligência do leitor.
Por tudo isto e por algo mais, que compete a cada leitor ir descobrindo, sou de opinião que “A Viagem do Elefante” de José Saramago é uma obra que deve ser lida vagarosa, saboreadamente. Uma obra que, com o correr dos anos, irá ganhando um lugar de relevo na produção literária do autor.

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