quinta-feira, 16 de abril de 2009

O TEMPO DA ESCUTA






Jorge Semprun, em entrevista publicada na revista "Le Magazine Littéraire", aborda um tema extremamente interessante, o do "décalage", tantas vezes existente, entre o tempo da escrita de uma obra literária e o da sua "escuta", por parte do público leitor. E dá um exemplo: é habitual afirmar-se que as obras sobre os campos de concentração da Alemanha nazista só começaram a aparecer bastante tarde, cerca de uma geração após o termo da Grande Guerra. Mas, em sua opinião, tal não é exacto, pois, alguns dos textos mais significativos (textos de Rousset, de Antelme, até de Primo Levi) apareceram pouco depois da extinção dessas instituições à morte consagradas. O que aconteceu foi outra coisa: não tiveram eco na opinião pública. O seu "tempo da escuta" ainda não tinha chegado. Foi preciso conhecerem-se os "goulags" soviéticos (e sobre eles se começasse a escrever), para que essas obras fossem devidamente recepcionadas - o que, evidentemente, levou ao aparecimento de uma extensa literatura sobre o tema.
Ora, o que aconteceu com a literatura sobre o Holocausto, também se tem dado com muitas outras obras, de géneros e assuntos diversíssimos, aquando da sua publicação. Quantas vezes tem sido preciso esperar a vinda de um outro tempo para que fossem minimamente valorizadas! E, acrescenta Semprun, este desfasamento entre o tempo da escrita e o tempo da sua recepção ainda se torna mais evidente quando se trata de obras que têm a memória como suporte. Recuperar o passado (o passado recente), por um exercício de memória de quem foi sua testemunha, é algo de complexo, que nem sempre se pode fazer de um modo directo ou imediato.
E, aqui, coloca-se uma outra questão (embora interligada com a primeira), a da literatura das memórias. Qual o seu papel, qual a sua razão de ser? Além das razões relativas à sociedade, na qual e para a qual o livro foi escrito, outras haverá, referentes ao autor, enquanto indivíduo engravidado pelo seu passado. E, acerca do efeito do texto memorialista no seu autor, Semprun acrescenta: "O seu efeito é duplo e contraditório. Por um lado, ajuda a apaziguar a memória, estruturando-a; por outro lado, reavive-a." E cita o seu caso: após a publicação da sua primeira obra sobre os campos da morte, "A Grande Viagem", os seus escritos sobre o tema não pararam mais. Não, o assunto não estava esgotado, como supôs inicialmente, pelo contrário, quanto mais dizia, mais tinha para dizer. Uma espécie de auto-estimulação da memória, que lhe permitiu, entre outras coisas, ter a certeza de que todo esse pesadelo, em que esteve mergulhado, não tinha sido um sonho mau, mas uma realidade, a mais terrível das realidades que o Homem pode viver - que não pode, que não deve ser esquecida.
Também todos nós, os que temos escrito histórias sobre o nosso passado, experimentamos o que Semprun tão bem caracterizou: por um lado, a dificuldade em dar início à escrita sobre esse passado (mormente se ele é doloroso); por outro, o extravasamento do caudal da memória, quando se abre uma pequena brecha no dique que o retinha. Mas, para além do que foi dito, algo se impõe aos autores que fazem da sua memória histórica a fonte da sua escrita: a necessidade de saberem aguardar o tempo propício à recepção da sua obra - o que nem sempre é fácil...

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