quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O Diabo e outros contos



Lev Tolstói é um dos GRANDES da literatura e um dos meus autores russos, os que me foram acompanhando ao longo da vida. É obviamente mais conhecida a sua vertente de obras de longo fôlego (Guerra e Paz; Anna Karénina), mas também publicou vários contos e novelas. A editora Relógio d’Água deu-nos já duas excelentíssimas novelas: “A morte de Ivan Illitch”e “A sonata de Kreutzer”. A mesma editora deu agora à estampa um volume de contos que intitulou “O diabo e outros contos”. Três dos contos (“O diabo”, “Depois do Baile” e “Três mortes”) já os tinha lido numa colectânea mais extensa publicada pela editora brasileira Cosac & Naify (tem um excelente catálogo). O conto “O patrão e o moço de estrebaria” já o tinha também lido recentemente numa pequena edição de bolso intitulada “Senhor e servo” (excelente). Restavam dois contos e não pude deixar de comprar o livro.
O conto “O padre Sérgui” coloca-nos perante uma crise espiritual. O príncipe Stepan Kassátski segue a carreira militar e é colocado no aristocrático regimento da guarda imperial. Jovem, brilhante e esforçado por fazer carreira, rapidamente progride. Para entrar nos círculos mais restritos da sociedade resolve casar com uma menina de círculo elevado. De algo tão cínico nasce, no entanto, uma paixão grande. Kassátski pertencia aquele tipo de homens que exigiam uma pureza ideal e celestial à esposa. Duas semanas antes do dia marcado para o casamento, a noiva conta-lhe que tinha sido amante do imperador. A desilusão quanto à noiva que imaginara um puríssimo anjo e a sensação de ter sido insultado eram tão fortes que o levaram ao desespero, desespero esse que o levou a Deus e a uma fé infantil. Kassátski toma o hábito e entra para um mosteiro. Ao fim de vários anos no mosteiro, sempre atormentado pelo desejo que se erguia impressionante, Kassátski tem um acto de grande orgulho perante um general que era do seu regimento. Pede então para ser transferido para outro sítio e acaba por se tornar eremita vivendo numa fenda de uma gruta. Um mulher tenta-o, mas ele consegue resistir cortando um dedo. Com o passar do tempo, começa a circular a ideia de que o padre Sérgui é curandeiro e milhares de pessoas o procuram. Cada vez ele acha mais que não está servir a Deus propriamente, mas às pessoas e com algum orgulho pessoal. E deixo o resto para vosso deleite pessoal.

O conto “Albert” é sobre um artista (músico) caído em desgraça, pobre, sem trabalho, miserável, alcoólico, mas que consegue encantar ao tocar violino. Ele ainda é recebido na Anna Ivánovna onde acontecem bailes todas as noites. Andrajoso, mas com um rosto digno, numa das noites de baile encanta toda a gente com uma melancólica música. Algo estranho acontecera a todos os presentes depois da encantatória música. Um jovem, Deléssov, decide tomar a seu cargo Albert e tentar que o seu talento lhe permita dedicar-se a sério à música, tocar para o público e abandonar o álcool. E instala Albert em sua casa. Mais uma vez deixo as peripécias da pretendida regeneração para uma leitura vossa.

Em conjunto, este é um excelente livro que entra no âmago das contradições do ser humano.

3 comentários:

JOSÉ FANHA disse...

Eu já calculava que este blog me ia reforçar a angústia de querer agarrar todos os livros ao mesmo tempo.

O Tolstoi é uma paixão recente. Já tenha lido em jovem alguma coisa dele que se me apagou.

Reencontrei-o e é uma paixão mas uma paixão fortíssima e terrível.

Estou a ler uma entrevista do Lobo Antunes em que ele diz de "A morte de Ivan Ilitch":

"... não pode haver coisa mais angustiante, que (nos) rasga.E é um livro que me dá uma felicidade enorme ler. O que me importa, enquanto leio, é a felicidade da mão."

Estou de acordo. É por aí que se aprende a gostar de ler. Pelos encontros felizes com as grandes mãos.

E concluindo, já cá tenho "O Diabo"
que entrou directamente para o lugar de cima dos livros muito urgentes. Logo a seguir o "Arquipélago da memória", do próprio Lobo Antunes.

beijos e abraços,

JFanha

JOSÉ FANHA disse...

Pronto. Já li. Tinha que ser. O Tolstoi é imprescindível.

cabe dizer que é mais uma belíssima tradução de Nina e Filipe Guerra que nos mostra como escrita de Tolstoi é poderosíssima. Mergulha na alma humana e vira-a do avesso. Arrasta-nos até onde raramente vamos no confronto com a nossa perecível condição. E dá-nos um retrato imenso e maravilhoso da Rússia com as suas Primaveras, os seus Outonos, os seus terríveis Invernos.

Brilhante, acima de tudo, a forma como cria um ambiente de angústia e nos deixa vivê-la intensa e demoradamente enquanto derrama sobre nós a sua arte narrativa e nos deixa no fio da lâmina por quanto tempo o quiser fazer.

Tolstoi pega na morte e leva-a a um confronto com o leitor que muito poucos escritores conseguem (algum conseguirá assim?). Pega na inveja, na volúpia, na paixão, faz-nos subir a altos arroubos da natureza humana e a seguir leva-nos a viver o esplendoroso e terrível pesadelo do naufrágio.

Mas precisa de espaço. Parece-me. Precisa de exercer demoradamente o maravilhoso ofício da escrita. Nos contos mais curtos parece sentir-se pouco á vontade, mais espartilhado e com maior dificuldade de estender a sua teia sobre o leitor.

Dos 5 contos o que me entusiasmou mais foi "O patrão e o moço da estrebaria". Os parágrafos finais de "Albert" e "Três mortes", cada um à sua maneira, são simplesmente fabulosos.

Anónimo disse...

Olá, Hoje o Clube de Leitores da livraria Bulhosa, Oeiras vai discutir este livro. 21.01.09