sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Gente das Nuvens

N'est-ce pas là ce que nous sommes venu chercher: le signe de l'origine ?

"Gens des Nuages"
Jemia e J.M.G. Le Clézio

A propósito do texto do mestre-amigo-cúmplice Albano Estrela sobre a obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, recentemente galardoado com o prémio Nobel de Literatura de 2008, arrisco umas breves linhas sobre um dos belos livros de viagem deste autor franco-mauriciano, desta feita escrito conjuntamente com a sua esposa, Jemia.

Viajar pelo Saara marroquino em busca de traços do processo migratório dos antepassados de Jemia é o objectivo declarado deste relato. Contudo, a envolvência da paisagem dá margem a reflexões transcendentes e universais. A dureza do ambiente e o seu silêncio imperturbável sugerem uma magia invisível, um absoluto irredutível que esculpidos em cada marca da paisagem balizam e fundem o fluxo histórico colectivo e individual. Só a leveza e o mistério dos nômadas do deserto, gente das nuvens, parece ser capaz de compreender verdadeiramente o que nos escapa, "o equilíbrio entre o sagrado e o profano, entre a palavra divina e a justiça humana. E o amor pela água e pelo espaço, o gosto do movimento, o culto da amizade e da generosidade. Apesar de nada possuirem para além dos seus rebanhos."

E não há economia de meios para descrever o poder transformador da viagem, "um progresso na direcção de uma nova dimensão. Pois, aqui em Saguia el Hamra, o passado não é o passado, ele mistura-se com o presente como uma imagem sobrepõe-se a outra. Como se sobre uma face se pudesse vislumbrar os traços que a engendraram, ou como se através das palavras de um mito pudesse surgir a verdade."

Mas exortam os autores que "o Saara não é só a beleza dos crepúsculos, da ondulação sensual das dunas, das caravanas de miragem. Aqui é um país onde o nível de vida é um dos mais baixos do mundo, onde a mortalidade infantil é a mais elevada (35%, contra menos que um por mil nos países industrializados). Onde a água dos poços é amarga; onde só a água da chuva, permite o deleite da água doce."

Mas é nesta paisagem que o presente sugere uma "via para a eternidade", onde "A dureza mineral ..., o desenho das nuvens, cada detalhe do horizonte são iscas visíveis para um outro vale onde reina o amor do santo pelo seu povo." Foi na intimidade aberta destas paragens que umas das grandes correntes filosóficas da história encontrou terreno fértil, uma escola do pensamento que unificou a lei do Profeta com a razão dos gregos, com a força bíblica, com a profundidade da meditação Vedanta, o sufismo de origem persa. Pois há no deserto uma "verdade sem forma".

Suponho que a leitura das belas páginas deste relato induz sobretudo sentimentos móveis, que dê asas à lei da atracção. Pois o deserto a muitos atrai (como outros são atraídos pelos mares, e outros pelas vastidões geladas). Mas a mim sugerem acima de tudo uma calma nostalgia. A da memória dos desertos por onde viajei e a do poema que lhes dediquei (O Poema do Deserto), já lá vão 20 anos.

Orfeu B.

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