quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

"HORA AZUL" de ALONSO CUETO



Mais um dos autores publicados em português que mostram como é poderosa e variada a literatura sul-americana.

O início é enganador. Parece uma xaropada light sobre a vida da burguesia bem posta da capital do Peru. Estive quase-quase para o pôr de parte. Só não o fiz porque conheço a editora (Mercado das Letras)e acredito no seu critério de escolha editotial. Tinha que haver ali um gato escondido. Eu é que não via o rabo de fora. Mas rápido apareceu.

O romance é contado na primeira pessoa por Adrián, advogado de sucesso, com escritório de luxo em Lima, secretária, clientes de dinheiro, uma família irrepreensível, mulher social e atenta, filhas amorosas, missa ao domingo, carreira brilhante e estável.

O ritmo narrativo é sólido, contido, sem sobressaltos. A escrita muito segura. No entanto, e sem que o ritmo se altere, com a morte da mãe, Adrian vê-se subitamente confrontado com o passado do pai, militar com a vida passada na guerra bárbara contra o Sendero Luminoso, um grupo guerrilheiro de suposta inspiração maoísta com métodos de terror que exerceu uma actividade feroz durante os anos 80 e inícios da década de 90.

Na guerra suja entre exército e Sendero, o pai de Adrián torturava, matava, violava jovens camponesas mais ou menos suspeitas de dar apoio aos guerrilheiros e mandava matá-las depois. Um dia, no entanto, apaixonou-se por uma dessas raparigas que conseguiu fugir-lhe e de que não se conhece o rasto.

Adrián fica obsecado pela busca dessa jovem e mergulha no outro lado da cidade e do país. Percebe então que o mundo social em que se move vive à margem da miséria, da pobreza, da violência. Vai cada vez mais fundo ao passado, em busca da rapariga que seu pai amou, movendo-se numa vertigem crescente que nos confronta com os relatos da guerra terrível que marcou a vida daquele país durante muitos anos, em que os métodos bárbaros de violação e tortura eram comuns na época a muitos países da América do Sul.

Não se trata de um livro mais ou menos folclórico sobre relatos de uma guerra suja. É mais do que isso. É um livro muito consistente e inquietante sobre a procura das raízes, a conquista da memória por mais dolorosa que ela seja. E nesta procura da memória encontrei, a certa altura, um paralelo com a nossa guerra colonial cuja memória está por construir, sabendo nós, no entanto, que a abertura à luz dessa memória pode ser o abrir de uma perigosa caixa de Pandora.

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