terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Rebeldes

Depois de ler fascinado As velas ardem até o fim, A herança de Eszter, e sobretudo o magnífico, A mulher certa, não fiquei indiferente a este novo título em português de Sándor Márai, autor húngaro, tão brilhante quanto enigmático.

A conturbada passagem da adolescência para a vida adulta de um grupo de jovens é o tema forte deste inquietante livro. Se por um lado a temática é claramente universal, o contexto onde a trama se desenrola é particularmente relevante na peremptória recusa destes jovens em aceitar a transição para o mundo dos adultos. De facto, mesmo que o auto-intitulado "bando" de jovens viva numa pequena cidade, algo isolada da Primeira Guerra Mundial que se desenvolve não muito longe dali, a decorrente destruição humana, material e de valores, assim como a esperada decomposição do Império Austro-Húngaro, sempre acaba por afecta-los. A ausência da autoridade paterna e circunstâncias familiares algo particulares deixam estes jovens completamente livres para desenvolverer uma actividade incongruente e liquidar o património das suas famílias. Esta bizarria é naturalmente menor quando comparada com a monstruosidade de uma guerra que ceifa milhões de vidas, mas Sándor Márai não é um autor que apresenta dicotomias fáceis e, claramente, não pretende enaltecer o romantismo dos ideais da juventude, pois o "bando" é inevitavelmente um microcosmo do mundo circundante. Há no seu seio contradições, hipocrisias e uma estrutura de classes, ainda que esta seja negada nas suas práticas quotidianas. E é finalmente esta estrutura de classes que leva à dissolução do "bando": um membro do grupo, pertencente à classe humilde, acaba por enredar os seus companheiros, e em particular o líder do grupo, numa trama de sedução envolvendo um actor de província. Porém, esta é, nas suas palavras, uma traição natural, dado que a si estava vetado poder desfrutar a vida como os ricos, ainda que isto nada tivesse a ver com a riqueza. Na verdade, este é um tema recorrente na obra de Sándor Márai, dado ter ficado profundamente marcado com a experiência, na Hungria do pós Segunda Guerra Mundial, da intolerante destruição, pelo comunismo de inspiração estalinista, do património cultural universal que estava sob a custódia da antiga classe dominante.

Mas se esses são elementos mais que suficientes para um grande livro, Sándor Márai não nos deixa de também maravilhar com reflexões de membros do "bando" sobre o acto de escrever e sobre a amizade. Termino com dois exemplos que considero magníficos:
"Começara a ler há dois anos. Lia, desordenadamente, tudo que lhe caía nas mãos. Um dia, escreveu qualquer coisa. Tinha quinze anos. Ao ver o que tinha escrito, assustou-se e escondeu o papel na gaveta. No dia seguinte, tirou-o e leu. Não era poesia, mas também não lhe parecia prosa. Assustou-se e rasgou-o. Este susto persistiu durante alguns dias. Ao tempo, ainda vivia "no mundo de cá". Não conseguiu falar com ninguém. O que era aquilo? Porque escrevera? O que significa alguém pegar numa caneta e pôr-se a escrever? E encontrar-se diante de algumas linhas limpas e acabadas. Porque o fizera? Assim escreviam também os escritores?"

E um pouco mais adiante:
"Havia um qualquer segredo por detrás dos livros, não era tanto o que diziam, antes a razão de alguém ter escrita aquelas linhas. Sobre isso, não tinha com quem falar. De vez em quando, tentava com Ernó, mas Ernó falava sempre de outra coisa. Falava do "conteúdo" dos livros. Ele sabia que isso tinha uma importância secundária. Teria que descobrir por que motivo se faziam livros. Seriam fonte de alegria para quem escrevia o que pensava? Ele sentia serem, antes, uma fonte de sofrimento. O que se escrevia, perdia-se, nada mais tinha de comum com a pessoa, trasformava-a numa recordação penosa, semelhante à de um crime, em virtude do qual - um dia, mais tarde - se poderia ser sempre responsabilizado."

E sobre a amizade:
"Alguém sorri, irresponsável, uma vez, e atolamo-nos logo nessa amizade. Ele não sabe que amizade é essa. Imaginara amigos de outro modo; por amigos entendia um passeio leve e sereno, uma simpatia sem compromisso, que não obrigasse a mais nada. Caminha-se lado a lado, trocam-se umas ideias... E agora, pela primeira vez, pensava que poderia existir entre as pessoas um gancho pesado e impossível de soltar, passível de ser rompido somente à custa de graves ferimentos."

E pouco depois:
"Quem sabe se estarei vivo e poderei, um dia, escrever alguma coisa. Escrever também é doloroso, mas não dói tanto como viver entre pessoas."

Orfeu B.

2 comentários:

Anónimo disse...

Este será concerteza mais um livro deste autor que deixa um vazio e inquietantes reflexões quando se termina a sua leitura.
Só pelo título e pelas linhas aqui escritas penso:
como será que todos os jovens rebeldes se transformam e vivem em adultos? ;
quantos dos adultos criticados são ainda jovens rebeldes desencontrados?.
um abraço,
Verónica

Unknown disse...

Não conhecia Sándor Márai, mas com a leitura dos "Rebeldes" fiquei a conhece-lo, adorei o livro, a sua escrita, o modo de abordar os sentimentos e sociedade da época, de seguida li a "Herança de Eszter e ainda mais fiquei a apreciar a sua obra, pena ser tão pouco conhecido entre nós.
Gostei deste blog, eu também adoro ler e tenho igualmente um blog sobre livros, onde tenho também um post sobre este livro.
Se quiserem dar uma espreitadela serão bem vindos.
www.oqueeuleio.blogspot.com
Pipas