"A Misteriosa chama da Rainha Loana" de Umberto Eco, Difel, 2005
Ser leitor é algo que nos envolve num sem número de circunstâncias. Os livros que lemos ancoram memórias. Quem nunca mudou de casa, não amaldiçoou o peso de caixas cheias de livros e não se sentou no chão esquecido do mundo e da mudança a reler um livro reencontrado? Parte da nossa vida é feita de (re)leituras. Uma parte de nós é feita de memórias.
Giambattista Bodoni, Yambo como todos lhe chamam, é um bem sucedido alfarrabista de Milão que aos cinquenta e nove anos sofre um AVC e perde a sua memória autobiográfica. No entanto, sendo um leitor voraz, a par do desconhecimento de si,mantém toda a memória das leituras feitas, os conhecimentos históricos e as referências literárias.
Desabitado de si, não se lembra do próprio nome, não reconhece a mulher ou as filhas . O afecto está ligado à memória. Sem a memória nada somos e os outros nada são para nós. Atravessa o livro esta condição perturbante da doença, a perspectiva real e assustadora de passarmos por algo assim. Mas Umberto Eco leva-nos de forma enternecedora pelos meandros da convalescença e poupa-nos como se partindo em viagem e olhando a paisagem esquecêssemos a dor de não poder caminhar.
Yambo, seguindo a sugestão de Paola, sua mulher, volta à casa da sua infância, em Solara, no campo, onde nasceu no Natal de 1931. Aí, entre livros, álbuns de banda desenhada, revistas, discos de outros tempos, cadernos de escola religiosamente guardados, vai tentando recuperar a memória feita de imagens fictícias e reais. Eu desconhecia muitas das referências a publicações periódicas, pela dupla distância da época e país, daí que de bom grado me teria levantado para fazer uma viagem a Itália e perder-me num alfarrabista em busca das reproduções que aparecem pelo meio do livro. (Seria também interessante ver o percurso de leituras portuguesas correspondentes…)
No caminho pelo meio dos livros, seus heróis, suas mulheres, Yambo descobre/recorda Lila seu amor de juventude perdido, esquecido, morta já há muitos anos. Entretanto, sofre um segundo AVC e mergulha de novo na penumbra. Fica prisioneiro do corpo, em coma, incapaz de comunicar. Mesmo assim ainda percorremos com ele memórias de infância, dos pais, dos programas de rádio… “voltarás para mim/porque o único sonho és/do meu coração./Voltarás/ porque sem teus beijos lânguidos /não viverei.”... Uma canção do fim da emissão como um apelo, uma promessa a um qualquer soldado perdido nas estepes, durante a guerra. Folheamos álbuns de selos, seguimos reflexões sobre Deus e seus mandamentos, memórias de Mussolini e da Itália fascista que também foi a da infância de Umberto Eco e continuamos a atravessar livros e a encontrar os seus personagens no meio de um nevoeiro cada vez mais cerrado. Acompanhamos Yambo na derradeira tentativa de ver Lila, como se a vida tivesse sido apenas um pretexto para esperar o momento de reencontrar, como Cyrano, no limiar da vida “a mais bela das criaturas”, o seu amor.
Povoam as páginas inúmeras ilustrações de livros, álbuns de BD, revistas… Este é um bom exemplo de um livro cheio de potencialidades para uma versão digital. Há um lado bom nos dois mundos: no de papel e no digital. Neste último aquela ideia da viagem a Itália para me perder num alfarrabista podia cumprir-se instantaneamente. E, se assim fosse ,talvez eu não estivesse já aqui a falar-vos de um livro que vos aconselho ler mas ainda a viajar com Salgari, com Dumas… Ou qual Beatriz seguindo Dante.
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