quarta-feira, 1 de julho de 2009

Leite Derramado



"Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida."
Chico Buarque convida-nos a entrar num quarto de um hospital onde um homem conta a uma mulher inexistente o seu passado, conta a degradação da sua vida, da sua família desde o tetra-avô ao tetra-neto. Por vezes a história repete-se, da forma como ele imagina alguns factos que desconhece, ou talvez não, talvez os queira acreditar assim. Os ouvintes, além de nós, são diversificados, desde dessa mulher, talvez uma enfermeira, até às pessoas que passam no corredor do hospital onde ele foi desterrado. Uma filha e um bisneto ajuda-o a queimar os poucos rendimentos e bens que lhe restam. O homem acaba numa favela a morar antes da queda que o faz ficar acamado numa casa de saúde (hospital).
Mas o melhor está na escrita de Chico Buarque que nos faz devorar este livro, cada palavra, cada frase. O facto de se colocar na cabeça de um homem idoso acamado que narra repetidamente as suas várias histórias de vida e um amor interrompido é um pretexto para a expressão da sua escrita da sua poética. Não é a primeira vez que Chico Buarque nos coloca perante uma personagem que teve um passado glorioso e um presente decadente, assim foi em "Budapeste", e no "Estorvo". Parece ser essa a sua generosidade literária, capaz de se meter na cabeça do homem que cai, dos outros, uma espécie de imagem de marca que de resto é coerente com as suas canções. Sente-se também alguma sátira, pelos rituais sociais, pela corrupção política. Depois há todo um conjunto de acontecimentos, intrigas, problemas que são bem cozinhados e com o tempero certo, que saboroso estava este livro.
Creio mesmo que este livro é mais uma das belas canções de Chico Buarque, a mais bela canção, a mais bela opera. Este romance fica para sempre na memória de quem o lê. Pelo menos eu,acho que só vou esquecer quando ficar senil, ou talvez não, ficará o romance também no meu corpo, porque por vezes senti um arrepio a lê-lo.

1 comentário:

Anónimo disse...

É verdade...este livro deixa marca!

E mesmo no estado senil, talvez ainda nos lembremos dele...como o personagem do livro!

Adorei e recomendo vivamente a sua leitura (atenta...).