quarta-feira, 29 de julho de 2009

Pequenos poemas em prosa




Esta vida é um hospital onde cada enfermo vive ansioso por mudar de leito. Este desejaria sofrer diante da lareira; aquele pensa que se curaria ao pé da janela.
   Tenho a impressão de que estaria sempre bem lá onde não estou, e este problema de mudança é um dos que eu discuto sem cessar com a minha alma.

Charles Baudelaire.


Pequenos poemas em prosa, incialmente lançado com o título, Le spleen de Paris, é um livro absolutamente soberbo. Publicado postumamente, os textos que compõem os Pequenos poemas em prosa demonstram abundantemente a plenitude de um escritor para o qual prosa e poesia não têm fronteiras. Conjuntamente com as Flores do Mal, este livro é um dos pontos de partida da modernidade pós-romântica, uma pedra de toque de praticamente quase tudo o que subsequentemente se escreveu na literatura ocidental. 

Mas se a genialiadade de Baudelaire foi reconhecida por muitos dos seus contemporâneos, não se pode falar de forma alguma em glória literária. A breve vida do artista, que morreu as 46 anos, foi amarga, pontuada pela penúria material, pela desilusão amorosa, pela perseguição de credores e por um ridículo processo judicial pela suposta obscenidade de sua arte. Mas, como pode um artista sobreviver a tais vicissitudes? A resposta vamos encontrá-la nas páginas dos Pequenos peomas em prosa: através da perspicaz radiografia da vida e de seus pequenos incidentes, através da pintura dos acontecimentos com verve, humor e auto-ironia. Sobrevive o artista pelo aperfeiçoamento da sua arte, pela perseguição de um ideal de perfeição estética que não encontra modelos no seu tempo, mas que vai sendo forjada ao longo do seu percurso fundador.

E através de um delicioso percurso literário leva-nos Baudelaire a viajar por entre as nuvens, por entre a bizarria de certos caprichos, pelos prazeres da carne, pela mundana maldade, pela obstinada generosidade, rara, mas apesar de tudo activa, pela preguiça e pelo tédio, e por diálogos filosóficos com um sofisticado diabo que, muito digno, nunca se furta de cumprimentar com cordialidade, o senhor bom deus, o seu milenar adversário. 


E para os que por ventura desconfiam da descrição hiperbólica que vos faço desta magnífica obra, permitam-me exemplificar com um breve texto. Exemplo que revela que o autor dos Pequenos poemas em prosa esteve, muito antes do que outros, a dar uma volta (take a walk) no wild side:


Perda de Auréola

- Mas o quê? você por aqui, meu caro? Você em tão mau lugar! você o bebedor de quintessências! você, o comedor de ambrósia! Francamente, é de surpreender.
- Meu caro, você bem conhece o meu pavor dos cavalos e das carruagens. Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço, onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como está vendo!
- Você deveria ao menos pôr um anúncio, ou comunicar a perda ao comissário.
- Ah! não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X., ou no Z.! Xi! como será engraçado!

Finalmente, também digna de nota é a elegante tradução para o português, versão brasileira, de Aurélio Burque de Holanda Ferreira, para a edição de 1976 da Editora Nova Fronteira do Rio de Janeiro. 



Orfeu B.


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