sexta-feira, 18 de julho de 2008

CARTA DE EÇA A OLIVEIRA MARTINS

UM GRANDE ABRAÇO PARA TODOS E EM ESPECIAL PARA O JOSÉ FANHA QUE ME TROUXE PARA ESTE PRAZER.

COMO "QUEIROSIANO DEPENDENTE" NÃO POSSO DEIXAR DE TRANSCREVER O QUE CONSIDERO SER UMA DAS MAIS DIVERTIDAS CARTAS DE EÇA DE QUEIROZ A QUAL RELEIO COM FREQUÊNCIA.

AUGUSTO DE FARIA,DIPLOMATA EM 1885,USAVA O TÍTULO DE VISCONDE DE FARIA E VAI SER SUBSTITUÍDO POR EÇA ,NO CONSULADO DE PARIS ,EM 1888.
A TRANSFERÊNCIA NÃO VAI SER PACÍFICA COMO RELATO DO PRÓPRIO EÇA.OIÇAMOS:

«MEU QUERIDO JOAQUIM PEDRO(OLIVEIRA MARTINS)

ESCREVO-TE À PRESSA DE PARIS ,E DO MEIO DE CENAS EXTRAORDINÁRIAS PROMOVIDAS PELA GENTE FARIA. CONTEI-AS AO PINA(MARIANO) EM CARTA REDIGIDA EM ESTILO TELEGRÁFICO,E REALMENTE NÃO POSSO AFRONTAR O NOJO DE TAS CONTAR DE NOVO,COM PORMENORES.BASTA SABER QUE QUANDO FUI AO CONSULADO ,TOMAR POSSE-FOI A VISCONDESSA DE FARIA QUE ME RECEBEU COMO SENDO ELA O CÔNSUL. NÃO SEI SE A CONHECES. É UMA ESPÉCIE DE VIRAGO,NO GÉNERO POTICHE,COM UMA VOZ GROSSA E ARROUCADA,E O GESTO TREMENDO. FEZ-ME UMA UMA PAVOROSA CENA DE BERROS,DE PROTESTOS,DE IMPRECAÇÕES,DE GANIDOS,DE MURROS NA MESA-QUE EU ESCUTEI VARADO,ATÓNITO,DE CHAPÉU NA MÃO,ORA RECUANDO QUANDO ELA ERGUIA O PUNHO AMEAÇADOR,ORA DANDO UM PASSO PARA A PORTA,EM MOVIMENTO DE FUGA,QUANDO POR UM INSTANTE,ELA VOLTAVA COSTAS. EM RESUMO,A MEDONHA CRIATURA DECLAROU QUE SÓ ELA ERA O CÔNSUL,AQUELE CONSULADO ERA O DELA,E NÃO HAVIA MINISTROS,NEM LEGAÇÕES,NEM AUTORIDADES QUE LHE FIZESSEM ENTREGAR AS CHAVES. NUM INTERVALO EM QUE ELA SE INTERROMPEU,ESFALFADA,DEI UM SALTO PARA O REPOSTEIRO,VAREI A PORTA ,GALGUEI ESCADAS ,PRECIPITEI-ME NUM FIACRE E SÓ PAREI EM CASA DOS VALBOM COMO NUM ASILO SEGURO.

MAS NÃO ACABA AQUI. IMAGINA TU A LEGÍTIMA INDIGNAÇÃO DO CONDE DE VALBOM. O NOSSO CARLOS(LOBO DE ÁVILA) TEVE UMA FÚRIA QUE LHE FEZ UM MAL IMENSO AO FÍGADO. NA LEGAÇÃO ESTAVA TUDO ATÓNITO- E VÁRIOS PORTUGUESES DA COLÓNIA ABRIAM OS OLHOS ESBUGALHADOS PARA O CASO SEM IGUAL. VALBOM DECIDIU-E ERA A ÚNICA SOLUÇÃO LÓGICA-FAZER OCUPAR O CONSULADO PELO VICE-CONSUL HONORÁRIO,PORQUE O CHANCELER ESTAVA AUSENTE,E FARIA EM LISBOA TRAMANDO. COM EFEITO O VICE-CONSUL,NO DIA SEGUINTE,VAI FAZER A OCUPAÇÃO-MAS,OH CASO MIRÍFICO,NÃO HAVIA JÁ CONSULADO! O ESCUDO DE ARMAS FORA ARREADO,PORTAS TRANCADAS,E ATRAVÉS DE UM GUICHET COMO NOS MELODRAMAS,UMA PORTEIRA DECLAROU QUE A SENHORA VISCONDESSA DE FARIA JÁ PROIBIRA A ENTRADA AOS AMANUENSES,E NÃO A PERMITIRIA A MAISNINGUEM. DAVA-SE AQUI O CASO TALVEZ ÚNICO NOS ANAIS DA BUROCRACIA EUROPEIA DE UMA REPARTIÇÃO DO ESTADO SEQUESTRADA POR UMA SENHORA! SÓ EM PORTUGAL,CONFESSA TU QUERIDO JOAQUIM PEDRO,SUCEDEM ESTES INCIDENTES .NEM NA ROMÉLIA,NEM EM TUNES! SÓ NAQUELE PAÍS DE FARSA QUE INVENTOU OFFENBACH,E NO NOSSO! CUBRAMOS A FACE,AMIGO! O VALBOM NÃO TINHA SENÃO A FAZER UMA COISA COERENTE E DIGNA-E FÊ-LA. PÔR O CASO NAS MÃOS DE GOBLET,E ESTE,DECERTO INTEIRAMENTE ÉPATÉ NAS MÃOS DA POLÍCIA.

AÍ VAI POIS O PREFEITO DA POLÍCIA,O CHEF DA SURETÉ,E VÁRIOS SERGENTS DE VILLE,A CAMINHO DO CONSULADO,A DAR BATALHA À VISCONDESSA DE FARIA,E A RETOMAR A REPARTIÇÃO DO ESTADO OCUPADO PELA CUIA E PELA TOUNURE DA TERRÍVEL SENHORA. NÃO SABEMOS O QUE ENTRE ELES SE PASSOU. APENAS É CERTO QUE O PREFEITO DA POLÍCIA VOLTOU DE LÁ DE DENTRO,DO COVIL,PÁLIDO,DECLARANDO QUE SE TODAS AS MULHERES ERAM ASSIM EM PORTUGAL,PORTUGAL ERA BEM UM PAÍS EXTRAORDINÁRIO! MAS CREIO QUE O HOMEM NO FUNDO VINHA ADMIRADO AVEC CET HEROISME DE FEMELLE! EM TODO O CASO TRAZIA A PROMESSA DE QUE ,NO DIA SEGUINTE,HOJE,ENTREGARIA TUDO AO VICE-CÔNSUL,OU ANTES ,AO COMISSÁRIO DA POLÍCIA. E PARECE QUE TUDO,COM EFEITO,FOI POUCO MAIS OU MENOS ENTREGUE-OU ESTÁ-O SENDO. DETALHE SUPREMO! O ESCUDO DE ARMAS ARREADO NA VÉSPERA DO ALTO DA PORTA,ESTAVA PENDURADO POR UM CORDEL DAS GRADES DE UM POSTIGO DO RÉS-DO-CHÃO!CONFESSA,QUERIDO,QUE A VISCONDESSA DE FARIA ACHOU AQUI UM SÍMBOÇO PROFUNDO E ENGENHOSO!AS QUINAS PENDURADAS POR UMA GUITA! O VELHO ESCUDO POR UM FIO! O EMBLEMA DOS SÉCULOS SUSPENSO DE UM BARBANTE E ARRASTADO NO ENXURRO DE PARIS! QUE É UMA MULHER DE GÉNIO! ANDAVAS TU AÍ A PROCURAR A FÓRMULA DEFINITIVA DA NOSSA SITUAÇÃO SOCIAL,SEM CONSEGUIR,EM VINTE ANOS DE LITERATURA,ACHÁ-LA BEM EXACTA E NÍTIDA.POIS BEM! A VISCONDESSA DE FARIA VEM,E,NUM RASGO DE INSPIRAÇÃO,ACHA ESSA FÓRMULA E REALIZA-A_ AS QUINAS DE PORTUGAL POR UM FIO!
TUDO ISTO É FANTÁSTICO!MENOS FANTÁSTICO PORÉM QUE A PRÓPRIA FARIA,E O FARIA,E TODA ESTA TRIBO!TÊM-ME CONTADO AQUI ANEDOCTAS DE UM GROTESCO INCOMPARÁVEL.NÃO TAS REPITO PORQUE RECEIO QUE,ARRASTADO PELO ENTUSIASMO DE ARTISTA,TU AS CONTES-E ALGUMAS DELAS PODERIAM,SE FOSSEM PUBLICADAS OU SABIDAS,PREJUDICAR O FARIA! ENFIM,PARA RESUMIR,EU ESTOU ENOJADO ATÉ Á SACIEDADE-E SACUDO AGORA DE MIM,COM PRAZER,ESTE SÓRDIDO E TORPE ASSUNTO»

A QUESTÃO DO CONSULADO NÃO TERIA SEQUÊNCIA.EÇA PERMANECERÁ NO SEU POSTO DE PARIS ATÉ 1900,DATA DA SUA MORTE,COMO NOS ENSINA CAMPOS MATOS.

2 comentários:

Tiago Carvalho disse...

Que sentido de humor. Li em tempos um livro de cartas de Fradique Mendes (foi Agualusa com "Nação Crioula " que me apresentou esta personagem de Fradique Mendes). Gostei muito dessas cartas, mas ler cartas de Eça de Queiroz na primeira pessoa, como mostra esta passagem, deve ser muito melhor. Além do mais se for como esta, é de rir e chorar por mais.

JOSÉ FANHA disse...

No seu acervo, Carlos Ventura, tem muitas pérolas como esta e estou certo que nos vai fazer partilhar algumas delas.

As nossas cartas, hoje, são diferentes. Rápidas, efémeras, minimais. Nelas o afecto é muitas vezes reduzido a fórmulas repetidas e vazias de engenho. Vão por email. Apagam-se a seguir.

Dantes, as cartas iam escritas em letra mais ou menos redonda, mais ou menos bicuda. Levavam um mês a chegar. Davam testemunho de formas de viver e namorar, hábitos, costumes, coscuvilhices, acontecimentos muitíssimo dramáticos e outros mais mesquinhos ou circunstanciais.

A História hoje em dia já não é (só) a história dos heróis e dos reis. É também a história do quotidiano e para essa História as cartas, os diários os jornais íntimos são um elemento fundamental.

Esta carta do Eça é um primor. Tem cheiro. Tem tacto. Respira-se como se lá estivéssemos esta pequena ocorrência delirante, este retrato por escrito de uma certa forma de ser português que passados tantos anos continua tão agarrada à nossa maneira de ser portugueses.

José Fanha