"Rafael", de Manuel Alegre, é um livro diferente na actual produção literária portuguesa. Por várias razões: a) porque se situa numa área temática pouco trabalhada entre nós - o memorialismo; b) porque é um documento de valor para o conhecimento da mentalidade portuguesa da segunda metade do século XX. Além disso, é uma obra muito bem escrita. Analisemos, pois, com mais pormenor, cada um destes aspectos.
Desde a sua obra "Alma", que Manuel Alegre atingiu, na prosa ficcional, um justo equilíbrio entre forma e conteúdo. Equilíbrio que decorre de uma adequada utilização da linguagem ao tema que aborda - o que faz sobressair as dimensões psicológica e social das personagens que povoam a sua narrativa. Linguagem saída da sua oficina poética, a conferir à "história" uma forte densidade humana.
A área temática em que o seu "Rafael" se inscreve, coloca-o no centro do memorialismo português. E este é um dos méritos principais do livro, até porque o memorialismo, enquanto género literário, é praticamente inexistente entre nós. Mas, se quisermos seguir uma corrente que surgiu nas últimas décadas do século XX, poderemos dizer que estamos perante uma obra de um novo género literário, denominado de autoficcção ou autonarração, ou seja, algo que se situa entre a autobiografia e o romance. Por tudo isso, esta obra deve ter um lugar de relevo na nossa literatura actual.
Para mim, no entanto, o seu mérito maior é outro: "Rafael" é um documento importante para a história das mentalidades no Portugal do terceiro quartel do século XX: a mentalidade do adolescente radicado numa terra de província; a mentalidade do estudante de Coimbra dos anos 50, 60, que se descobre - que se vai descobrindo - como ser de cultura e cidadão que se quer interveniente (estudante cercado pelos muros de silêncio e opressão, que se erguem no interior da sua universidade-cidadela); a mentalidade do jovem oficial despejado na África da guerra colonial, em que o absurdo, o sórdido, o grotesco, a crueldade (e um toque de humanidade) se entretecem numa rede complexa, em que o homem dificilmente sobrevive; a mentalidade daquele que, por Paris e outras paragens, vai percorrendo a via-sacra do mais duro dos exílios - o exílio do refugiado político. E é dentro desta óptica, a da descida ao mundo interior de um jovem português da diáspora, que Manuel Alegre atinge um dos momentos mais altos do seu livro - e, estou em crer, de toda a sua obra narrativa. Esse jovem, que é ele e não é (como convém a um autêntico livro de memórias), é o símbolo de uma geração que fez da luta política um caminho para a liberdade (o mesmo será dizer, para a dignidade). Caminho que o leva a repudiar qualquer forma de totalitarismo, seja ele o "fascismo" salazarista ou o "comunismo" soviético.
Por tudo o que ficou dito, repito, torna-se evidente que "Rafael" é a história de uma época, contada por quem a viveu (e sofreu), mas que, em simultâneo, foi adquirindo o necessário recuo para poder perspectivar, com clareza, os problemas em que esteve envolvido. Ou, por outras palavras, uma obra imprescindível - insisto - para o conhecimento de uma dimensão importante da História do Portugal do século XX.
Desde a sua obra "Alma", que Manuel Alegre atingiu, na prosa ficcional, um justo equilíbrio entre forma e conteúdo. Equilíbrio que decorre de uma adequada utilização da linguagem ao tema que aborda - o que faz sobressair as dimensões psicológica e social das personagens que povoam a sua narrativa. Linguagem saída da sua oficina poética, a conferir à "história" uma forte densidade humana.
A área temática em que o seu "Rafael" se inscreve, coloca-o no centro do memorialismo português. E este é um dos méritos principais do livro, até porque o memorialismo, enquanto género literário, é praticamente inexistente entre nós. Mas, se quisermos seguir uma corrente que surgiu nas últimas décadas do século XX, poderemos dizer que estamos perante uma obra de um novo género literário, denominado de autoficcção ou autonarração, ou seja, algo que se situa entre a autobiografia e o romance. Por tudo isso, esta obra deve ter um lugar de relevo na nossa literatura actual.
Para mim, no entanto, o seu mérito maior é outro: "Rafael" é um documento importante para a história das mentalidades no Portugal do terceiro quartel do século XX: a mentalidade do adolescente radicado numa terra de província; a mentalidade do estudante de Coimbra dos anos 50, 60, que se descobre - que se vai descobrindo - como ser de cultura e cidadão que se quer interveniente (estudante cercado pelos muros de silêncio e opressão, que se erguem no interior da sua universidade-cidadela); a mentalidade do jovem oficial despejado na África da guerra colonial, em que o absurdo, o sórdido, o grotesco, a crueldade (e um toque de humanidade) se entretecem numa rede complexa, em que o homem dificilmente sobrevive; a mentalidade daquele que, por Paris e outras paragens, vai percorrendo a via-sacra do mais duro dos exílios - o exílio do refugiado político. E é dentro desta óptica, a da descida ao mundo interior de um jovem português da diáspora, que Manuel Alegre atinge um dos momentos mais altos do seu livro - e, estou em crer, de toda a sua obra narrativa. Esse jovem, que é ele e não é (como convém a um autêntico livro de memórias), é o símbolo de uma geração que fez da luta política um caminho para a liberdade (o mesmo será dizer, para a dignidade). Caminho que o leva a repudiar qualquer forma de totalitarismo, seja ele o "fascismo" salazarista ou o "comunismo" soviético.
Por tudo o que ficou dito, repito, torna-se evidente que "Rafael" é a história de uma época, contada por quem a viveu (e sofreu), mas que, em simultâneo, foi adquirindo o necessário recuo para poder perspectivar, com clareza, os problemas em que esteve envolvido. Ou, por outras palavras, uma obra imprescindível - insisto - para o conhecimento de uma dimensão importante da História do Portugal do século XX.
1 comentário:
Caro Albano,
Li há pouco um romance interessante: "A síndrome de Ulisses" do colombiano Santiago Gamboa. Passa-se em Paris e constitui uma via sacra pelas vidas dos emigrantes e dos exilados. Será também uma mistura de ficção e memórias? É provável que sim.
Desse livro ressalto uma frase que vai muito bem com o magnífico romance do Manuel Alegre, com a sua história e om a sua obra:
“…a poesia e o exílio são velhos companheiros…”
Talvez seja por isso (e por certo, não só) que a prosa do Manuel Alegre está tão carregada de poesia.
Um abraço,
JFanha
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