terça-feira, 26 de agosto de 2008


Acabei de ler “O Heresiarca & C.ª” do Guillaume Apollinaire (mais conhecido pela sua obra poética do que pela prosa) recentemente traduzido pela Assírio & Alvim. Começo por destacar a excelente apresentação do tradutor (Aníbal Fernandes), a cuidada tradução e a profusão de notas dada a constante referência a figuras históricas e mitológicas ao longo do livro, profusão essa que apesar de cortar um pouco o ritmo da leitura nos ajuda muito à compreensão do texto. Trata-se de um livro de contos que podemos dividir em duas temáticas distintas. Em primeiro lugar, temos um conjunto de contos em que existe um tensão grande entre o profano e o sagrado, o sacrílego e o religioso: Exemplos soltos e avulsos: “O heresiarca fechou rapidamente a sotaina, deu um nó no cordão e convidou-me, com um sorriso, a entrar na sala contígua que era a biblioteca. Eu estava estupefacto por ver que aquele homem dava á carne semelhantes castigos e ao mesmo tempo satisfazia a sua glutona sensualidade” (in o Heresiarca e C.ª); de um padre numa recepção com o papa: “ A vossa Infalibilidade, esse dogma incontestável porque assenta numa realidade terrestre, confere-vos um magistério que não suscita nenhuma contradição. Podeis impor aos católicos a verdade ou o erro, á vossa escolha. Sede bom! Sede humano! Ensinai o que é verdadeiro! Ordenai ex cathedra que o catolicismo seja dissolvido! Proclamai que as suas práticas são supersticiosas! Anunciai que o glorioso e milenar papel da igreja terminou! Erigi estas verdades como dogma e tereis adquirido o reconhecimento da Humanidade (in A Infalibilidade). Os restantes contos têm uma dimensão mágica/surreal latente. Um homem capaz de mimetismo com as paredes dos edifícios; um guardanapo que nas recepções de um pintor aos seus amigos era sempre oferecido aos convivas com a desculpa de que a lavadeira não cumpria o seu serviço. Os convivas vão morrendo e no final o lenço adquire nos quatro cantos as feições dos convivas; um falso Messias capaz de estar presente simultaneamente em várias sinagogas ao mesmo tempo, etc.
Em suma, um livro de uma beleza erudita que se lê serena mas avidamente.

Acrescento a apresentação do autor que podemos ler no sítio da editora:

Nasceu em Roma, em 1880, filho de uma nobre polaca e de pai desconhecido (possivelmente um oficial italiano com quem a mãe vivia na época do seu nascimento). A infância e adolescência de Guillaume e do seu irmão, Albert, repartiram-se por várias cidades, obedecendo à errância amorosa da mãe: Roma, Paris, Mónaco, Cannes e Nice.Aos 20 anos, instalado em Paris, interessou-se por literatura e política, revelando simpatias anarquistas. Começou a procurar emprego. Também nessa altura, inicia a escrita novelas eróticas para sobreviver. Nos anos seguintes, viajou até à Áustria, Alemanha e Inglaterra. Por volta de 1901, quando trabalhava como perceptor de uma família alemã, conheceu e apaixonou-se por Annie Playden, a governanta inglesa. Este amor não correspondido inspirou-o a escrever «A canção do mal amado».Entre 1902 e 1907 publicou contos e poemas em várias revistas (incluindo a portuguesa O Portugal Futurista). Entre os seus amigos de Paris dessa altura, contam-se Picasso, Rousseau e Delaunay, entre outros.Em 1911, foi preso por suspeita de roubo de umas estatuetas fenícias do Louvre. Em 1913, publicou Alcools, uma recolha do seu trabalho poético desde 1898.Alistou-se no exército francês em 1914, e partiu para a guerra (uma ocasião que lhe serviu para se declarar «francês genuíno» e servir a sua pátria). Combateu na Cavalaria, e mais tarde passou à Infantaria. Para não perder a veia poética, trocava abundante correspondência com os amigos e a mais recente paixão não correspondida, Louise de Coligny-Châtillon (ou «Lou», como lhe chamava nos poemas). Acabou por ser ferido na cabeça pela explosão de um obus.Depois de recuperar, e já em Paris, voltou ao trabalho: levou à cena a peça Les Mamelles de Tirésias e publicou Calligrammes. Em 1918, casou com Jacqueline Kolb (a «linda ruiva» do último poema de Calligrammes), mas enfraquecido pela ferida de combate, morreu em Novembro desse ano, de gripe espanhola. Tinha 38 anos. Foi enterrado no cemitério de Père Lachaise, enquanto pelas ruas de Paris se festejava o fim da guerra.

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