A referência de Alberto Manguel a Amélie Nothomb fez-me recordar o livro da autora, "Temor e Tremor" (edição portuguesa da ASA). Na verdade, e como diz Manguel, trata-se de um romance que conta uma história, a história de Amélie (uma jovem europeia), funcionária durante um ano, de uma empresa japonesa, sediada em Tóquio. A história desenvolve-se em torno de uma relação complexa, tensa, entre Amélie e outros funcionários da empresa, todos japoneses e imbuídos de uma mística empresarial muito própria. O choque de culturas constitui a matriz dos conflitos que se vão sucedendo. Entre esses conflitos, avulta o de Amélie com a sua superiora hierárquica, a belíssima e arrogante Fubuki (a "Tempestade de Neve"). A narrativa está centrada na primeira pessoa e será, pois, através de Amélie, dos seus actos, dos seus sentimentos, dos seus valores, que o leitor vai ter acesso ao desenrolar da história-conflito. O que, no entanto, não o obrigará a tomar partido, pois as perspectivas que a narradora lhe propõe são sempre matizadas por alguma dúvida interpretativa, expressão da sua propensão para a tolerância, para a compreensão do outro (mesmo quando por ele é ofendida).
Um dos aspectos mais interessantes da obra é a caracterização que nos faz da empresa nipónica: as suas regras de funcionamento, os valores que lhes estão subjacentes: hierarquia, disciplina rígida, obediência total. Um sentido de honra-dever, que impregna todos os actos do quotidiano, mesmo os mais insignificantes. Enfim, algo que é inerente à sociedade feudal do Japão Medieval, que se consubstanciou nas relações dos samurais com os seus senhores. Samurais que devem temer - e tremer - quando se dirigem ao seu superior. Mas Amélie tem dificuldade em aceitar este modo de ser e de estar e contra eles se revolta. Mas, ao mesmo tempo, tenta compreender, pois, acima de tudo, admira, ama, a civilização japonesa - um ideal que lhe vem da infância e que ela não que ver maculado.
O elemento central da história é a relação de Amélie com a sua chefe - um misto de amor e ódio, que a japonesa maneja com a subtileza e o requinte de que só um oriental é capaz - o que leva Amélie a situações profissionais degradantes. Assim, de despromoção em despromoção, acaba por ficar encarregada da limpeza das retretes. Humilhação que ela não deixa que a afecte psicologicamente: tudo o que lhe vai acontecendo acaba por ser fonte de alegria e de liberdade – a liberdade interior que experencia a freira do Carmelo encarregada das tarefas mais rotinizadas e aviltantes.
Talvez este romance não seja obra maior da moderna literatura francesa, mas encerra, em cada um dos seus capítulos, uma enorme pujança narrativa, que nos obriga a ler, de um só fôlego, as suas 117 páginas. O que me faz dar razão a Alberto Manguel: uma boa leitura ainda é o grande indicador de uma boa literatura...
1 comentário:
Estava na Biblioteca do Alvito quando li o texto do Albano. Fui à estante e lá estava, inesperadamente, o "Temor e tremer" desta Amélie.
Estou a lê-lo e é muito divertido, fresco, jovem. Uma empresa japonesa vista pelo olhar crítico de quem conhece muito bem o país.
Amélie Nothomb é belga mas nasceu e no Japão e vivieu até à adolescência no extremo-oriente.
Depois digo mais.Para já estou muito divertido.
Abraços,
JFanha
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