segunda-feira, 25 de agosto de 2008

HISTÓRIAS DE 1 MINUTO



As histórias pequeninas sempre me fascinaram. Por isso, não perco oportunidade de as ler, venham elas de onde vierem. E, desta vez, vieram da Hungria, em livro de Istvän Örkény, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, com o título de "Histórias de 1 Minuto." Evidentemente que nem todas as histórias podem ser lidas num minuto e são exactamente as que excedem essa medida temporal (embora continuem a ser curtas) que mais me agradaram. E por várias razões: por serem expressão de uma literatura (e de uma cultura) que desconheço; por constituírem exercícios de escrita de algum virtuosismo, em que o leitor tem de se implicar, a fim de "completar" o que "falta" na história; por utilizarem o humor como suporte da acção, mas sempre fugindo à linearidade ou à banalidade da anedota, que esbate sentidos e reduz o humor à graça fácil da pilhéria. Proska Filcai, o tradutor, em prefácio à obra, refere-se a esse risco, que o autor soube correr, e ao modo como o evitou:
"Os narradores destes contos, assumindo um ponto de vista de intelectuais observadores, tentam mostrar as situações grotescas da vida. A maioria das vezes elaboram urna narração que interpreta os dados - ao contrário dos modos narrativos que contam anedotas -, assim chamando a atenção para as irracionalidades, para as contradições do nosso mundo."
E, um pouco mais à frente, esclarece:
... (a obra) "foi o produto de um longo processo da sua escrita, durante o qual os textos baseados em anedotas simples foram ultrapassados por um tom grotesco-filosófico."
Este é, para mim, um dos méritos da obra: pegar numa anedota, recriar e ampliar o seu sentido, tornando-a numa referência da nossa condição humana - no que ela tem de grandioso ou de mesquinho -, é tarefa só ao alcance de um grande escritor.
Vejamos um exemplo, colhido ao acaso. No conto "A Bravura Incomparável da Polícia", descreve-se um roubo ocorrido numa estação de correios, no momento em que se verificou um corte de electricidade. A polícia, posta na pista do crime, prende, num bar, dois "suspeitos" e dois outros indivíduos, seus "cúmplices." Na esquadra, fizeram-lhes apenas uma pergunta: no dia X, às tantas horas, na estação de correios H, houve um roubo de uma avultada quantia de dinheiro, no momento em que se deu um corte de energia. Se vocês passassem por lá, nesse momento, e vissem a estação desprotegida, praticariam esse roubo? Os bebedores, que talvez tivessem achado piada à pergunta, responderam sem hesitação: oh, sim! O que bastou para os incriminar e levar a tribunal. Este procedimento policial foi muito apreciado pelas autoridades superiores, que passaram a recomendar a sua utilização de um modo sistemático, pois, assim, poder-se-iam evitar muitos crimes, prendendo preventivamente os seus (possíveis) autores. Este conto, que se aplicava com muita propriedade aos países do leste europeu, sujeitos a uma forte repressão policial e política, tem, hoje, um sentido muito mais amplo, como se verifica pelo conceito (e prática) da guerra preventiva, tão querido à administração americana de George Bush...
Ainda um outro exemplo, já a roçar a impossibilidade de transformar a banalidade da anedota em história com um significado específico. Estou a referir-me ao textinho intitulado "O Pesadelo". Um soldador, que trabalha até muito tarde, vem sempre para casa de madrugada e bastante alcoolizado. Como não tem chave da porta da rua, toca para o porteiro. É o único inquilino que chega tão tarde, o que enfurece o dito porteiro, pois obriga-o a levantar-se no momento em que o sono é mais profundo. O senhor Kálmán Kirch, o inquilino, como bêbado gentil que é, saúda-o sempre da mesma maneira: "Boa noite, querido senhor Hornák", o que o enfurece ainda mais. Nessa noite, acontece o mesmo, talvez com uma pequena diferença: Kirch ainda está mais bêbado. Sobe ao andar onde vive e abre a porta que dá para a varanda, a fim de apanhar o ar fresco da noite, mas a varanda ainda não tem grade e o nosso Kirch cai do segundo andar sobre um monte de neve. Recomposto, volta a tocar à campainha do seu prédio. O porteiro, que entretanto tinha adormecido, acorda em sobressalto, a amaldiçoar tal inquilino. Mas logo se lembra que ele já tinha entrado e isso acalma-o um tanto. Mas, ao deparar-se com o seu "algoz", que o cumprimenta com a afabilidade de sempre, entra em descontrolo total, acabando por ser levado para o manicómio. Enfim, uma história feita de quase nada, mas que nos dá a dimensão da tensão das nossas relações sociais e da fragilidade do equilíbrio psicológico de cada um de nós.
Muitos outros merecimentos têm as histórias de Istvän Örkény, mas, hoje, não quis deixar de realçar a estreita relação que existe, em muitos dos seus textos, entre a anedota e a história com um sentido e uma estrutura específicos, que lhes conferem uma inequívoca dimensão literária. Melhor, será difícil fazer. Diferente, talvez. Eu não seria capaz!

2 comentários:

Paulo Ventura disse...

Caro Albano,
também eu li com grande prazer estas pequeníssimas histórias que o Albano tão bem sintetiza e descreve.

CARLOS V disse...

JÁ TINHA LIDO ESTAS HISTÓRIAS QUE ME DEIXARAM ALEGREMENTE APREENSIVO.
A SINTESE DO ALBANO É ,NA VERDADE,EXCELENTE.